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[ARTIGO] O Body Horror no Cinema de Julia Ducournau

Em 2021, a Palma de Ouro de Cannes foi entregue pela segunda vez na história para uma mulher: Julia Ducournau. Cineasta francesa, Ducournau chamou a atenção do mainstream do cinema com a obra “Titane” (ou "Titânio", em tradução livre), uma chocante produção de Terror e Drama cujo “body horror” é uma de suas principais características. 

 

Segundo a própria diretora, "um dos meus objetivos foi trazer o cinema de gênero, ou os filmes 'ovni', para os festivais em geral, a fim de deixar de marginalizar parte da produção francesa. [...] O gênero também permite falar sobre o indivíduo, e, muito profundamente, sobre os nossos medos e desejos".

Julia Ducournau recebendo a Palma de Ouro de Cannes, em 2021, ao lado dos protagonistas de "Titane", Agathe Rousselle e Vicent Lindon.

Ou seja, ao levar um dos prêmios mais importantes do cinema mundial, Julia Ducournau aproveitou a visibilidade para chamar a atenção para o cinema de gênero, algo menosprezado pelos críticos e que poucas vezes chegam à “prateleira do grande cânone cinematográfico”. E é por isso que surge a necessidade de debatermos o cinema feito pela diretora francesa. 

 

O cinema de gênero, em especial o terror, é uma poderosa forma de arte, seja pela estética em si, seja pela mensagem que ela pode vincular. Analisar o “body horror” presente nas duas mais importantes obras da cineasta francesa, “Grave” (2016) e “Titane” (2021), é mais do que necessário.


MAS ANTES, O QUE É “BODY HORROR”? 

 

Poderíamos definir “body horror” simplesmente como um subgênero do terror responsável por mostrar a degradação e/ou violação física de uma pessoa, gerando perturbação no público por meio desta. Mas não podemos reduzir um dos mais importantes subgêneros do terror a isso.

 

Para começar, poderíamos datar o início do “body horror” em meados do século XIX, quando as correntes literárias do terror gótico e do sci-fi encontraram-se, originando a obra-prima “Frankenstein”, de Mary Shelley. Aqui temos exatamente uma história de terror cujo principal ponto é a violação corporal, gerando um ser fisicamente profano.

Assim, o “body horror” foi se desenvolvendo e acabou compondo a tríade dos “gêneros de excesso", ao lado da “pornografia” e do “melodrama”. Os três levam essa denominação uma vez que todos causam algum impacto físico significativo em seu público, uma catarse em forma de reação corporal, seja a excitação, no caso da pornografia, o choro ou a gargalhada no melodrama, e o incômodo e a agonia no body horror.

 

Dessa maneira, há inúmeros exemplos de body horror no cinema, mas um dos maiores nomes é o canadense David Cronenberg. Com filmes como “Shivers” (1975), “Rabid” (1977), “Scanners” (1981), “Videodrome” (1983), e o seu filme mais famoso, “A Mosca” (1986), ele aterrorizou toda uma geração com suas nojeiras sem fim e as transformações físicas mais bizarras possíveis. 

Um ponto importantíssimo deste gênero é que a transformação e/ou violação não pode ser rápida. Parte da agonia vem do fato de vermos essas mudanças físicas e essa deteriorização ser gradativa, como podemos ver na imagem abaixo, o exemplo de “A Mosca”, em que um cientista tem seus genes misturados com o de uma mosca e, ao decorrer do filme inteiro, ele vai se transformando em uma espécie de mosca-humana. Ou seja, para uma obra ser body horror, o corpo deve ser o protagonista da trama. É óbvio que outros subgêneros como o slasher, o giallo e os filmes de zumbi, por exemplo, usam a violação e a transformação do corpo, mas isso é sempre algo coadjuvante na narrativa. 

Outro importante expoente do body horror é o mangaká Junji Ito. Dono de uma arte estonteante e de uma mente perturbada, ele vem, desde meados dos anos 1990, produzindo obras perturbadoras como “Tomie”, “Shiver”, “Smashed”, “Fragmentos do Horror” e “A sala de aula que derreteu”. Inclusive, vale notar que o mangaká chegou a produzir uma adaptação em quadrinhos de “Frankenstein”, onde temos uma caracterização bizarra da criatura de Mary Shelley, mostrando, mais uma vez, a influência dessa obra para o subgênero em questão.


OS FILMES DE JULIA DUCOURNAU

 

Acredito que antes de irmos para a análise com spoilers do enredo dos filmes de Julia Ducournau, caiba uma contextualização para quem não os conhece. A diretora francesa tem quatro créditos de direção em seu currículo: “Junior” (2011) é seu curta-metragem de estreia, e ali já temos uma adolescente de 13 anos sofrendo transformações corporais bizarras; “Eat” ou “Mange” (2012) é um longa-metragem co-dirigido por Ducournau em parceria com Virgile Bramly (único trabalho assinado por este autor até aqui), que conta a história de uma mulher com distúrbios alimentares.

E então, em 2016, Julia Ducournau lança seu primeiro longa-metragem cem por cento autoral, escrito e dirigido pela própria autora: “Grave” (título original francês e que veio da mesma forma para o Brasil) ou “Raw” (título internacional do filme, que, em tradução livre, significa “cru”). E é a partir daqui que iremos nos debruçar para analisar o cinema da autora. A trama gira em torno de Justine (vivida pela atriz Garance Marillier, que está presente nos quatro filmes da diretora), uma caloura que acabou de ingressar na universidade de medicina veterinária. 

 

Vegetariana, ela é forçada a participar de um trote na faculdade em que teria que ingerir fígado cru de coelho. Após o trote, a garota passa a sentir uma estranha atração por carne, influenciando transformações das mais bizarras na jovem. Vale mencionar que, a partir do segundo ato do filme, Alexia (personagem interpretada pela atriz Ella Rumpf), irmã mais velha de Justine e sua veterana na universidade, passa a dividir o protagonismo do filme. 

Já o mais recente, e premiado, filme de Julia Ducournau é “Titane”, ou "Titânio", lançado em 2021 e vencedor da Palma de Ouro de Cannes, maior premiação do festival. A direção e o roteiro novamente são inteiramente da autora francesa. Aqui, acompanhamos Alexia (vivida magistralmente pela atriz Agathe Rousselle), uma dançarina que, após sofrer um acidente na infância, teve uma placa de titânio instalada em seu crânio.

 

Alexia passa a desenvolver uma estranha relação com carros, o que a afasta de quaisquer relações mais próximas com seres humanos. Eis que a nossa protagonista precisa fugir da sua casa, engravida no processo, e acaba sofrendo as mais terríveis transformações corporais, as quais ela precisa desesperadamente esconder, para que Vincent (vivido pelo ator Vincent Lindon), um homem que a ajuda, não descubra a verdade.


Agora, vamos para a análise em si do cinema body horror de Julia Ducournau. Para quem não curte revelações mais fortes do enredo dos filmes, aviso que a próxima etapa terá spoilers.


O BODY HORROR NO CINEMA DE JULIA DUCOURNAU

 

A estética de Julia Ducournau é poderosa e marcante em ambos os filmes citados acima, contendo uma assinatura forte da diretora. Começando pela câmera que passeia pelos cenários com pouquíssimos cortes, ora acompanhando a protagonista feminina de perto, quase como se víssemos pela perspectiva dela, ora vendo a reação da protagonista diante do cenário e do contexto em que ela está inserida. Há uma sonoplastia sensacional também, que nos faz sentir cada toque ao corpo, cada tato gera ruído e cada ruído nos atinge, bem como a trilha-sonora, que entra nos momentos exatos da narrativa, intensificando ou contrastando com o que vemos. As cores fortes também dominam os ambientes, sempre complementando o mar de símbolos que temos nos filmes.

E todos esses elementos citados estão à serviço do body horror de Julia Ducournau. A câmera sempre próxima das protagonistas nos faz entrar na intimidade delas, ver suas transformações corporais de perto. É angustiante seguirmos os desejos de Justine em “Grave” (2016). Ver como ela precisa ficar contendo seus próprios impulsos a todo momento. Ver seu desconforto em não poder morder os pescoços dos outros estudantes nas festas, ou até mesmo a maravilhosa cena de sexo entra ela e seu parceiro de quarto, Adrien (vivido pelo ator Rabah Nait Oufella), em que há uma mistura selvagem do morder sexual e do morder puramente animalesco. 

Assim como é angustiante acompanhar cada momento em que Alexia, de “Titane” (2021), precisa esconder seu próprio corpo, que está mudando pouco a pouco com a gravidez, uma vez que esta não pode ser notada como mulher. Vemos como sua barriga aumenta, seus peitos aumentam, e ela precisa continuar se escondendo, gerando feridas, cortes por todo seu corpo. Há também, gradativamente, a presença do titânio em sua barriga. Todos esses efeitos são causados por uma câmera extremamente introspectiva, que entra na intimidade de suas personagens.

Já a sonoplastia é a coisa mais genial e mais incômoda do cinema de Ducournau. Em “Grave” (2016), quando Justine tem sua reação alérgica à carne que comeu no trote universitário, em que ela começa a se coçar sem parar, o som é simplesmente ensurdecedor. Aquele barulho de unhas se esfregando em uma pele áspera e irritada vai fazendo com que nós nos contorçamos na cadeira. É simplesmente impossível não ficar extremamente incomodado com essa sequência. 

Assim como não é possível ouvir a faixa que Alexia usa para esconder o volume dos peitos ranger e se esticar, roçando e comprimindo o corpo da protagonista de “Titane” (2021), sem ter qualquer reflexo involuntário. Há ainda a valorização de sons metálicos no decorrer de toda a narrativa, como a vareta de metal utilizada por Alexia para prender seu cabelo e matar suas vítimas.

O desconforto no body horror de Ducournau vem muito do som. Esse é um fator que o diferencia demais, e ouso dizer que a diretora francesa faz o body horror mais audiovisual que já assisti, pois o desconforto da imagem é igualmente refletido no som, enquanto os outros filmes do gênero acabam por focar muito na escatologia visual.

 

Dessa maneira, quero chamar a atenção para duas cenas, uma em cada filme, para exemplificar a maestria do body horror audiovisual de Ducournau. Em “Grave” (2016), há o ponto de virada da trama em que a câmera intimista e a sonoplastia convergem para um dos momentos mais inspirados da diretora: a cena onde Justine come o dedo de sua própria irmã. Neste instante, o enquadramento deixa o corpo desmaiado da irmã ao fundo, enquanto, em primeiro plano, a protagonista fica reticente quanto ao que fazer com o dedo de Alexia. Quando ela começa a comê-lo, o som da boca de Justine chupando os ossos é absurdamente desconfortável, isso somado à vermos Alexia levantando-se ao fundo. É um dos pontos altos da cinematografia de Ducournau.

Porém, o ponto mais alto da direção da francesa é, indiscutivelmente, o parto em “Titânio” (2021). Ali é o ápice do body horror, com a barriga da protagonista partindo-se, sendo rasgada de fora a fora, e a placa de titânio aparecendo, mostrando uma placenta metálica. A música sobe, complementando os gritos de Alexia, elevando a cena a algo miraculoso. Vincent tem sua redenção ao ajudar Alexia, que também tem sua redenção ao ter conseguido se conectar verdadeiramente com um humano pela primeira vez. Tudo é imaculado nesta cena. O caráter divinal nela é incrível. Julia Ducournau eleva o profano body horror ao milagre. É uma das passagens mais lindas do cinema de horror da história.

Por fim, vale ressaltar que a obra de Julia vai muito além do body horror, sendo um grande cinema feminista, que propõe discussões socialmente relevantes sobre gênero e sexualidade. Por exemplo, em "Grave" (2016), podemos criar uma interpretação do amadurecer sexual de Justine, uma vez que ela vai para a universidade ainda virgem, e ao se descobrir carnívora, também inicia sua vida sexual. Ademais, em "Titane" (2021), pode-se traçar todo um paralelo sobre transexualidade, bem como um paralelo para as próprias mudanças corporais que a mulher sofre ao engravidar.

 

É interessante perceber como o body horror é recorrente em tramas produzidas por mulheres, vide a origem com a própria Mary Shelley, e hoje em dia com o cinema de Julia. Talvez a pressão social sobre o corpo feminino seja um cenário fértil para tramas feministas dentro do subgênero do horror corporal. Ao fim e ao cabo, não arranhei a superfície do trabalho da autora francesa. O recorte é necessário, uma vez que o cinema de Ducournau é bastante complexo, cheio de simbolismos e metáforas. 


ALEXANDRE CRISTIANO ☕💀

Graduado em Letras e Mestre em Ensino, com foco em Tecnologias, Diversidade e Cultura.

Amante do Terror em todas suas formas, em especial o Trash, os Slashers e os Universos Apocalípticos e Pós-Apocalípticos.

Sempre com uma xícara de café preto na mão.

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